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A wonderful day

A wonderful day

03
Dez24

Aurora

A mãe de Dalva tinha nome de amanhecer: Aurora. O nome que ela ganhou ao nascer, foi sendo conquistado ao longo da vida. Aurora iluminava as pessoas, as coisas, as tarefas mais banais. Via graça em tudo o que fazia, ao contrário de só querer fazer o que via graça. Enchia a boca para dizer: É para varrer? Vamos varrer, se você dança com a vassoura, ela dança com você. Se é para lavar, lave, que a alma sai limpa do esforço. Sofrer com miudeza é querer ser infeliz, ignore o cisco. Se o corpo cansa, dê a ele um tempo, quase tudo pode esperar. Nunca lamentava, dava um jeito de trazer a alegria para perto. E como o rio corre para o mar, a alegria sempre dava um jeito de amanhecer com Aurora.

em "Tudo é Rio" de Carla Madeira, pág. 73

Advento #1

24
Out24

Mas e o amor?

Venâncio e Dalva casaram apaixonados. Perdidamente. Quem via os dois pedia a Deus uma sorte igual. O amor tem nome, mas não é nada que possamos reconhecer só de olhar. A dor nós sabemos o que é, tem lugar e intensidades que cabem na ciência. A raiva, o medo, o ódio entortam a cara com um jeito provável de se manifestar. Mas e o amor? O que é senão um monte de gostar? Gostar de falar, gostar de tocar, gostar de cheirar, gostar de ouvir, gostar de olhar. Gostar de se abandonar no outro. O amor não passa de um gostar de muitos verbos ao mesmo tempo. No caso de Venâncio e Dalva, o gosto de cada sentido unia os dois para mais de muitas vidas, pareciam eternos de tão juntos. Um saboreava o outro.

em "Tudo é Rio" de Carla Madeira, pág. 23

18
Ago24

Três hipóteses

- Temos três hipóteses possíveis – explica-me o Max, quando percebe que eu continuo com muitas dúvidas em relação ao plano. – A primeira é aceitar esta nova ordem e viver resignadamente num país totalitário, mas em profunda regeneração ambiental, na esperança de que, dentro de pouco tempo seja permitido formar novos partidos políticos e disputar eleições livres. A História mostra-nos que tal nunca acontece. O mais provável é que as Brigadas ganhem as eleições, vendo-se mais legitimadas pelo voto popular. A segunda hipótese é fugir daqui sem salvar mais ninguém, vivendo com o peso na consciência de não ter feito nada, cúmplices com o nosso silêncio. A terceira é fugir daqui, mas levando connosco a Laura, que será a prova de que este é um regime repressivo, que diariamente atropela os direitos dos seus cidadãos.

em “Admirável Mundo Verde” de Filipa Fonseca Silva, pág. 144

14
Ago24

As Guerras Meridionais da Água

O grupo paramilitar Os Grifos teve origem nas Guerras Meridionais da Água. Estas guerras abarcaram toda a bacia mediterrânica e tiveram, por sua vez, origem em diversos factores. Os historiadores, politólogos e sociólogos não estiveram – e ainda não estão – de acordo quanto aos factores que levaram, sem margem para dúvida, ao eclodir da guerra. No entanto, há alguns fatores aceites por quase todos os especialistas da área, e que são amiúde mencionados na literatura especializada: a carência de água que se fazia sentir há anos na bacia mediterrânica; a escassez de alimentos que resultara da quebra acentuada na produção agrícola, devido à falta de água e de agentes polinizadores; a pressão demográfica da África subsariana, onde à instabilidade política e social se havia também juntado a crescente falta de recursos hídricos e alimentares; a instabilidade política dos países mediterrânicos, tanto europeus, quanto africanos e levantinos; a pobreza e a revolta social causadas pela pandemia do designado rex-virus 3; o crescente avanço da extrema-direita em todos os países, com o apoio de destabilizadores russos; o abandono de antigas ligações culturais e alianças político-militares em resultado do fim da hegemonia norte-americana e europeia e de estabelecimento de uma nova centralidade económico-militar localizada no Extremo Oriente e no Pacífico.

em “Cadernos da Água” de João Reis, págs. 148 e 149

11
Ago24

Vou-me embora

o_mergulho_II.jpg

(imagem retirada daqui)

Fiz, vinte anos aqui, casei por baixo da tília, de cabelo apanhado num rabo-decavalo.

Fiz, trinta anos aqui, e estive de barriga quatro vezes. Três bebés que cresceram, quase sem darmos por isso. E o outro, o bebé que não sobreviveu, está sepultado um pouco mais longe. Não pusemos flores no seu túmulo.

Fiz, quarenta anos aqui, um mundo para comandar com mão firme, sempre com um sorriso. E depois anos doces, o riso do meu homem, a sua calvície e as suas mãos atrevidas.

Fiz, cinquenta anos aqui, sem temer o amanhã.

Fiz, sessenta anos aqui, festejados num dia de tempestade, e setenta anos, o andar mais lento, sempre de mãos dadas com ele.

Fiz, oitenta anos aqui, o Henri desaparecera alguns meses antes e os filhos diziam-me “vira a página”.

Desde então, avanço quase caindo a cada passo, porque cada passo me afasta ainda mais dele.

Nada mais terei aqui, nenhuma festa, nenhuma queda, nenhuma noite de amor. Não voltarei a abrir as portadas pela fresca da manhã. Não voltarei a sentar-me, com um copo na mão, para contemplar o sol a pôr-se.

Vou-me embora.

Em “O Mergulho” de Séverine Vidal; Ilustração: Víctor L. Pinel, pág. 12

09
Ago24

Amor?!

Amor.

Se é que se poderia chamar amor àquele distúrbio, que incluía violência física, manipulação, dependência e subjugação. Um sentimento doença, debilitante e terminal.

O coração da minha mãe traiu-nos, via-se no modo como o olhava enquanto ele lhe descascava uma peça de fruta e como reagia quando ele lhe acariciava os ombros. Nunca me apercebera daquela reação antes, talvez porque quando eles passaram fases boas eu estava demasiado absorvida nos meus dilemas de adolescente, e, depois, os problemas financeiros chegaram e não havia carícias, só gritos, destempero e violência.

em "O Som em Mim" de Iris Bravo, págs 218 e 219

25
Jul24

Um dia a lágrima acaba?

Não Consigo.

tentei segurar

as lágrimas que caíam na minha mão em

concha,

eram tantas,

será que com o uso

um dia a lágrima acaba?, e a vida

pode ser longa e eu não queria

virar

uma menina sem lágrima no meio do caminho

uma mulher.

coloquei minha água na boca, foi salgando a

língua ao invés da mão.

minha mãe

sentou tímida ao meu lado.

sempre gostei dela fazendo carinho no meu cabelo

    mas hoje estava esquisito, no dia que eu

    descobri o que é Morrer.

em "O Peso do Pássaro Morto" de Aline Bei, pág. 31

30
Mai24

Flores nascidas do chão

20240516_171447.jpg

"Eu adoro as flores nascidas do chão

mesmo onde não há mais nada para além de alcatrão

A força das flores é tão imensa

que crescem mesmo na calçada, desde que viradas ao sol

E assim também se fazem as flores que trago para casa,

com teimosia e

exactidão,

Fico a olhá-las

porque têm muitas cores,

São desenhos complicados como os desamores

Complicadas que são,

não deixarão de existir;

Mesmo no mais árido chão

faz sentido florir."

em "As estradas são para ir" de Márcia (pág. 28)

Estou a ler o livro "As estradas são para ir" da Márcia. A leitura está a ser lenta para poder saborear a escrita e as ilustruções. Um livro muito bonito que vale a pena ter por perto, abrir, ler umas palavras e continuar. O texto acima transcrito não tem título, mas como tinha de colocar um título no post este pareceu-me adequado.

 

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