As Intermitências da Morte
Fiz as pazes com a escrita de Saramago.
Durante a adolescência e o início da vida adulta li alguns livros de José Saramago, e apesar de não me recordar bem das histórias, tenho presente que são livros que marcaram o meu percurso enquanto leitora: “A Jangada de Pedra”, “Levantado do Chão” e “Memorial do Convento”. No entanto, pouco a pouco, abandonei a leitura de José Saramago e não tinha vontade de retomar.
Recentemente, com as partilhas dos clubes de leitura a que pertenço, foi crescendo em mim a vontade de voltar a ler José Saramago. A oportunidade surgiu com a leitura conjunta do livro “As intermitências da Morte”.
“No dia seguinte ninguém morreu.” e assim começa um livro, escrito de forma magnífica, sobre a ausência da morte num determinado país, sobre o impacto de ninguém morrer, quer a nível pessoal, quer na sociedade. Um livro que obriga a refletir, com um retrato da sociedade acutilante e muito atual. São inúmeras as perguntas e reflexões que surgem ao longo da leitura deste livro, especialmente se for uma leitura partilhada.
Um livro que recomendo e que se lê facilmente. Da minha parte, em breve, voltarei a ler Saramago.
“Quando a morte, por sua conta e risco, decidiu suspender a sua actividade a partir do dia um de janeiro deste ano, não lhe passou pela oca cabeça a ideia de que uma instância superior da hierarquia poderia pedir-lhe contas do bizarro despautério, como igualmente não pensou na altíssima probabilidade de que a sua pinturesca invenção das cartas de cor violeta fosse vista com maus olhos pela referida instância ou outra mais acima.
São estes os perigos do automatismo das práticas, da rotina embaladora, da práxis cansada. Uma pessoa, ou a morte, para o caso tanto faz, vai cumprindo escrupulosamente o seu trabalho, um dia atrás de outro dia, sem problemas, sem dúvidas, pondo toda a sua atenção em seguir pautas superiormente estabelecidas, e se, ao cabo de um tempo, ninguém lhe aparece a meter o nariz na maneira como desempenha as suas obrigações , é certo e sabido que essa pessoa, e assim sucedeu também à morte, acabará por comportar-se, sem que de tal se aperceba, como se fosse rainha e senhora do que faz, e não só isso, também de quando e de como o deve fazer.”
Em “As Intermitências da Morte”, págs. 168 e 169 (edição de 2005 da Editorial Caminho)
Boas leituras!